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Medeiros Neto/Salvador

Filho da Supervisora Educacional Maria Luiza lança o romance "O Discurso do Tempo" em Salvador

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No dia 24 de abril, sexta-feira, às 20h, a Roberto Alban Galeria sediará o lançamento do mais novo livro do autor baiano Marcos A. P. Ribeiro, O Discurso do Tempo. A obra — publicada pela editora 7 Letras, com apoio da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), entidade vinculada à Secretaria de Cultura do Governo do Estado da Bahia (SecultBA), através do Edital Setorial de Literatura 2013, financiado pelo Fundo de Cultura (FCBA) — é considerada um “romance de formação”, no qual o autor mistura memória, ficção, emoção e razão para apresentar um panorama da sociedade baiana na segunda metade do século XX.

Marcos Ribeiro viveu seus primeiros anos no município de Medeiros Neto, onde se passa o romance. O Autor é Filho da Supervisora Educacional Maria Luiza Pessoa Ribeiro e do Médico Dr. Nestor Ribeiro (in memoriam). Ribeiro descreve a inundação que ocorreu na cidade de Medeiros Neto em 1968.

Nascido em Jequié, cidade localizada no sudoeste baiano, Ribeiro graduou-se em Medicina, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e especializou-se em História da Ciência, pela UNICAMP, em São Paulo. Para ele, que já publicou outros cinco livros de diversos gêneros literários, O Discurso do Tempo é um romance de caráter autobiográfico: “Este livro é totalmente pessoal, um ‘livro de autor’. Não segui qualquer fórmula conhecida e nem fiz concessões mercadológicas. Até as fotografias são de minha autoria”, afirmou. E por ser justamente um trabalho pessoal, a obra conta histórias do autor e de pessoas que o cercaram durante o seu crescimento, como a família e os amigos mais próximos.

Marcos A P Ribeiro Foto Alejandra H Munoz2

No livro também se encontram questionamentos e dúvidas, pessoais e profissionais, que culminaram na decisão de Marcos de se tornar escritor. “Em que contexto foram realizadas minhas escolhas e quais os fatores que influenciaram minhas decisões? Que lugar eu deveria ocupar na sociedade e como compatibilizar este lócus social, ao qual parecia estar predestinado, com a minha subjetividade e aspirações pessoais? Tudo isso é narrado sob a forma de literatura”, conta o autor, que espera que O Discurso do Tempo seja bem aceito pelo público. “Escrever é como lançar uma garrafa contendo uma mensagem no oceano do tempo. Leitores do futuro poderão encontrar a garrafa e ler a mensagem”, finaliza.

Edital Setorial de Literatura – O certame apóia propostas culturais com o objetivo de estimular os diversos elos da rede produtiva do setor e ações que dialoguem com outros segmentos, tendo como objeto predominante a literatura. Abrange, por exemplo, criação literária; atividades ou ações que tenham como característica o estímulo à aproximação do público com escritores; circulação (regional e/ou nacional) de autores baianos; e diversas outras ações.

Lançamento do romance O Discurso do Tempo

Onde: Roberto Alban Galeria (Rua Senta Pua, 53 – Ondina)

Quando: 24 de abril, sexta-feira, às 20h

Mais informações

Marcos A. P. Ribeiro: 71 9178-4909 | [email protected]

Roberto Alban Galeria: 71 3243-3982

EXCERTO DO LIVRO “O DISCURSO DO TEMPO”, DE MARCOS A. P. RIBEIRO

“Aos dois anos de construída, quando ainda havia cheiro de novo nos armários, a casa foi inundada.

Uma noite quente de verão, meu pai viajara a uma cidade próxima; convenci minha mãe a nos deixar ir ao cinema.

O argumento para não nos permitir era meu pai estar viajando.

Eu não via nexo entre uma coisa e outra; o cinema ficava na mesma rua em que morávamos, iríamos a pé, o dono do cinema era conhecido. Parecia-me uma negativa absurda, arbitrária.

Não me lembro do filme, mas sei que não me interessava muito. Deveria ter uns onze, doze anos. Queria apenas fazer alguma coisa.

Em meio à sessão, começamos a ouvir um movimento incomum, um burburinho do lado de fora do cinema. As pessoas saíam; algumas voltavam, outras não. A sala foi ficando vazia.

Então soubemos que havia uma ameaça de inundação; o volume de água nos rios aumentava rapidamente.

Decidimos ir olhar. O rio principal passava justamente atrás do cinema. Eu e meu irmão saímos e ficamos olhando a torrente caudalosa, escura e espumante, que avançava turbulenta pela noite, invadindo as margens, ameaçando a ponte. Sentimos muito medo. Mudos, demo-nos as mãos.

Fui acometido de terrível sentimento de culpa. Aquilo seria castigo, admoestação divina pelo fato de ter insistido em ir ao cinema, contra a vontade de minha mãe, e a um filme que não era importante para mim, quando meu pai estava viajando; ela tentara me advertir da existência de uma conexão subterrânea entre a viagem dele e a ida ao cinema; eu infringira alguma regra que desconhecia e isso desencadeara a fúria divina; estávamos sendo punidos pela minha imprudência.

A sessão foi interrompida. Voltamos para casa, assustados.

Na rua, encontramos minha mãe descalça, cabelos desgrenhados, chorando.

Meu pai ainda não voltara e, para fazê-lo, precisava atravessar a ponte que as águas do rio começavam a lamber com uma sensualidade intimidadora, sinistra, de femme fatale.

Meu pai conseguiu atravessar a ponte com risco da própria vida. Creio que foi o último a fazê-lo; a ponte logo cedeu, vibrou por alguns momentos e foi levada aos trambolhões rio abaixo.

Ao vê-lo são e salvo, minha mãe caiu de joelhos, abraçou-lhe as pernas, Gritando:

– Graças à Virgem Maria! Obrigada, Senhor! Obrigada, Senhor!

Meu pai procurou imediatamente avaliar a gravidade das circunstâncias para decidir que medidas adotar.

Soube-se que a ponte sobre o outro rio também fora levada.

A cidade estava isolada.

Fomos ver como estava a situação junto às margens. A água avançava em rápidas e espessas enxurradas, ultrapassando todos os limites de inundações anteriores, atingindo os marcos que os habitantes mais antigos consideravam pontos sem retorno: se chegasse a eles, a cidade seria irremediavelmente inundada.

Meu pai recebeu telefonema de um amigo, cuja fazenda ficava às margens do rio principal, a montante da cidade: disse-lhe que estava ausente e que, ao retornar, pudera distinguir apenas o telhado da casa sendo arrastada pelas águas. Nunca vira

nada igual.

Decidiu-se que deveríamos abandonar a casa.

Minha mãe chorava em desespero: iria entregar – o que ela tão diligente e arduamente construíra, materializando, em concreto, madeira e vidro, seus melhores sonhos juvenis – à imponderabilidade daquela água lodosa e funesta a avançar pela noite.

Com seu talento para o trágico e a capacidade de imaginar sempre o pior, achou que a casa fosse ruir.

Mas logo lhe asseguraram que isso não poderia acontecer: a água chegaria enfraquecida, não teria força para tanto.

O tempo era curto: imaginando-se que o segundo andar não seria atingido, levou-se para lá o que foi possível.

Cortinas foram amarradas às sanefas, roupas e livros transferidos para as prateleiras mais altas, ou colocadas sobre os móveis.

Saímos apenas com algumas roupas, documentos, mantimentos.

Os vizinhos ajudaram; alguns, a quem a casa encantava e talvez

devido à pobreza de suas habitações e ao pouco valor de seus pertences – aliado a um sentimento de gratidão por meu pai, médico de confiança, com quem sempre podiam contar, mesmo que não tivessem dinheiro no momento nem nunca – abandonaram à própria sorte suas casas para nos ajudar.

A princípio, fomos para a casa de amigos numa rua próxima, mais elevada. Porém, logo se percebeu que ela também seria atingida pelas águas.

Nova mudança. Agora, para um sobrado construído na parte alta da cidade, em área recém-ocupada, limítrofes aos pastos.

Já era de madrugada quando nos instalamos definitivamente.

Nossa rua estava coberta por um metro e meio de água; canoas circulavam por ela.

Eu e meu irmão chorávamos. Nossos pais foram tentar salvar mais alguma coisa. Ficamos em companhia de empregadas, babás, mulheres desconhecidas que nos ofereciam comida e se esforçavam, em vão, para nos consolar.

Naquele ambiente estranho, eu me sentia perdido. Rezava para que a água parasse de subir. Achava que seria como no dilúvio, das aulas de Catecismo. As águas cobririam tudo, matariam a todos.

Para um adulto era claro e lógico que a inundação teria um limite e não alcançaria as partes altas da cidade; mas não para mim.

Embora considerasse que Deus não poderia punir toda a humanidade por um erro meu, estava seguro que minha infração fora o deflagrador do processo que, por esta razão, começava justamente por minha cidade.

Fui tomado por uma espécie de terror cósmico, sentimento que, muitos anos depois, reencontraria em Lovecraft.

No universo havia forças totalmente desconhecidas, fora de qualquer controle, contra as quais meus pais, meus avós, meus tios, os amigos de meus pais, de meus avós, de meus tios, sempre tão bondosos e solícitos, dispostos a remover do caminho qualquer obstáculo à minha felicidade, nada podiam fazer.

Sempre suspeitara que as pessoas – em particular minha mãe – viviam às voltas com problemas falsos, espúrios, criados, na verdade, por elas mesmas, por razões que desconhecia. Como se irradiassem ao seu redor halos de problemas fictícios que as acompanhavam e sem os quais não poderiam viver. Algo como uma biosfera secretada ad hoc; atmosfera psíquica particular; a nuvem de tempestade pessoal que acompanhava os personagens dos quadrinhos e desenhos animados.

Agora, pela primeira vez, deparávamo-nos com um problema real, verdadeiro, sério. Como se comportariam?

Para minha surpresa, as pessoas mostraram-se tranquilas, sensatas, cooperativas.

Compreendi, enfim, o que meu pai queria dizer com “sua mãe faz tempestade em copo d’ água”.

Diante de problemas menores, imaginários, fictícios, ou mera possibilidade de problemas, ela se exasperava, se encolerizava, tornando-se indiscriminada e indistintamente agressiva, como se, ao fazê-lo, pudesse aplacar a fúria originada da própria insegurança da incapacidade de lidar com apuros. Porém, quando surgiam situações verdadeiramente difíceis e graves, comportava- se serenamente, racionalmente; até pedia calma aos outros.

O sobrado pertencia a “seu” Neco, fazendeiro que nos acolhera.

Homem franco e rude, alto, forte, pele terrosa e seca; face vincada por cicatriz na bochecha esquerda que a repuxava para dentro; lábios protraídos e unidos formando permanente muxoxo.

Expressava-se de forma assertiva, com irritação preventiva contra inútil e tolo argumento do interlocutor.

A cicatriz, de facão.

Tornara-se fazendeiro com o dinheiro da venda de galos de rinha. Comprara o primeiro pedaço de terra para plantar feijão, depois outro, mais outro junto ao primeiro, com a renda da plantação; adquirira terras em litígio porque eram mais baratas e muitas vezes teve que recorrer à violência para mantê-las.

Possuía orgulho áspero e franqueza ostensiva. Acreditava que sua história pessoal o municiasse com incontestável verdade de vencedor; seria legítimo relacionar-se com o mundo a partir dela.

Meu pai era o médico de sua família, recuperara-o de grave enfermidade, ajudara a trazer ao mundo três de seus oito filhos.

Bastava para que se tornasse amigo, aliado fiel; pelo seu código de honra, creio que isso significasse dar a vida por meu pai, se necessário.

Meu pai admirava-lhe a honradez e autossuficiência – de um self made man para outro. Referia-se a sua saga particular num tom anedótico e curioso, como a exemplificar a natureza vária dos homens; quase como se relatasse um caso da literatura médica que devia ser compreendido e não moralmente julgado.

Duros dias no sobrado. Outras famílias também foram ali abrigadas. Havia limitação de espaço e até de alimentos. Pairava a sombra da privação material.

Essa possibilidade fora, até então, inimaginável para mim; conhecia-a apenas dos livros de aventura. Pessoalmente, acreditava-me imune, a salvo dela.

O isolamento da cidade propiciou a escassez dos gêneros alimentícios

e de produtos como sabonete, dentifrício etc.

Evidentemente, ninguém passou fome, e uma higiene pessoal insatisfatória não constitui exatamente uma tragédia, mas, para mim, acostumado a solicitar das empregadas preparo de determinados alimentos sem nunca ouvir um não – e que convencera meu pai a enviar o chofer a uma cidade vizinha, através de setenta quilômetros de estrada precária, apenas para comprar bacon para meu café da manhã, porque assim desjejuavam os americanos nos filmes – a experiência era significativa.

Lembro de uma grande mesa de madeira escura, rotatória, na qual todos os habitantes do sobrado, creio que, por turno, almoçavam. Quando se desejava algo – arroz, feijão, manteiga – não se pedia para passar, mas se fazia um sinal para que a mesa fosse girada até que aquilo que se desejava ficasse em frente ao comensal que, então, podia se servir.

Mas o processo era penoso. A mesa era pesada e seu giro paralisava a refeição por breves e tensos momentos; tornava-se patente que alguém estava querendo mais de algo cuja escassez era compartilhada por todos. Não se tratava de refeição festiva, comunal, na qual amigos compartiam a alegria de comerem juntos.

Algumas daquelas pessoas mal se conheciam, outras apenas civilizadamente se toleravam, mas eram forçadas a dividir o espaço e o alimento.

A expressão de “seu” Neco, durante os terríveis momentos de giro da mesa – quando o tempo parecia sólido, tangível como um poliedro – era de gravidade insuportável: vetusto anfitrião, ofendido em seu dever de hospitalidade; sacerdote tentando evitar a debandada de fiéis; chefe militar exortando seus homens a

épico sacrifício.

Quando amanheceu, havia parado de chover; as águas, parado de avançar.

Agradeci ardorosamente a Deus, prometendo ser tudo aquilo que meus pais desejavam que eu fosse e nunca, nunca me comportar mal. Sentia-me em convalescença moral. Nova oportunidade me fora dada.

Nossos pais não permitiram que víssemos a casa inundada.

A água atingira o segundo andar.

Numa fotografia, meu pai, de calção e camisa aberta, desembarca de uma canoa numa sacada.

Está acompanhado de outros moradores; a expressão é de altivez constrangida, de quem se vê obrigado a comportamento abaixo do nível exigido pela própria dignidade.

Móveis, tapetes, cortinas, livros, documentos, fotografias: quase tudo destruído. Colchões colocados em cima de mesas ficaram encharcados, e o peso rompeu os tampos de mármore. Livros viraram pasta. Cortinas flutuavam fantasmagoricamente pelos quartos. Minha mãe encontrou uma galinha morta no living.

Quando voltamos para casa, ainda havia marcas de lama em toda a rua.

Muitas coisas importantes se perderam; algumas seriam recuperadas, outras nunca. “

Fundação Cultural do Estado da Bahia

 

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